Será possível? Estarão os marinheiros a alucinar? O
mais que provável naufrágio não aconteceu! Em boa altura os ventos que
carregavam a morte aos ombros, tal como os seus odores, desapareceram, mercê de
um sortilégio improvável. Se a tormenta durasse mais alguns instantes, ninguém
teria sobrevivido.
Quase todos os homens tinham deixado de acreditar na
salvação, e bem poucos foram aqueles que nela sempre confiaram. Resistiram,
como podiam, segurando-se às partes mais palpáveis daquela realidade escura,
fria e ameaçadora. Os seus corpos gelados ficaram secos de esperança, e todas
as ideias lhes pareciam inúteis. Dona morte divertiu-se a afagá-los por mais de
uma vez, deixando que os seus bichos medonhos lhes conquistassem as almas a
roubassem a última réstia de esperança. Perceberam que o fim estava próximo,
viram-no ali tão perto, e espalharam-se pelo chão dos navios, guiados pelo
medo.
E eis que a manhã nasce radiosa, e eles acordam e mal
conseguem acreditar. Ninguém devia existir! Um silêncio de incredulidade
mantém-se em suspenso por um longo período, até ser interrompido por um ruído
abafado, repetitivo e ritmado, que chega do lado de fora do navio. Alguma coisa
bate compassadamente na grande nau, provocando um som oco que chega até ao
convés onde os marinheiros permanecem expectantes. O capitão lança-se à procura
da origem do estranho batuque, e é com um tremendo espanto que descobre um
náufrago a boiar, junto ao casco da embarcação, no qual vai batendo grandes
palmadas.
- HOMEM AO MAR! Depressa, venham acudir a este
marinheiro que caiu ao mar! RÁPIDO, MEXAM-SE, que o desgraçado já quase não tem
forças…
Os tripulantes são rápidos a reagir, e lançam-lhe
uma rede bem esticada onde o náufrago se fixa para que o consigam içar.
Álvaro aprecia sentir o corpo a ser esfregado desta
maneira ao longo do corpo negro da grande nau que ajudou a salvar, enquanto o
vão alçando. A rede é a sua companhia, e a felicidade cresce nele e nos seus
camaradas, que muito se alegram com esta salvação. O último puxão lança-o para
o chão que ele logo beija, esfregando-lhe os braços e as pernas, arranhando-lhe
as unhas dos mesmos dedos com que se segurou a Cecília, que até ali o carregou.
- VEJAM! É Álvaro, o marinheiro bailarino. É um
verdadeiro milagre teres conseguido sobreviver no mar enquanto durou a
tempestade. Os ventos e as ondas que te levaram foram benevolentes, talvez
tenham apreciado as tuas danças tanto como nós. – exclama o comandante, com o
sorriso estampado no rosto.
Os deuses e todos os anjos do céu estiveram do lado
dos navegantes. Nenhum deste homens devia existir, e principalmente porque
nenhum destes homens devia existir, é que todos sentem, neste momento, uma
sensação de extrema felicidade. Agora que o bom tempo está de regresso, um
turbilhão de emoções toma conta das almas dos navegantes, que se abraçam, cantando
e festejando a boa nova.
Sobreviveram! Isso é o mais importante.
Quem sabe se o resto da viagem não terá ficado
garantida.
Agora estão entretidos a escutar a brisa e o mar, pequenos,
mas tão enormes.
O canto da gaivotas regressou. Os pássaros escutam,
sentem e cheiram este lugar onde o tempo parou.
Os marinheiros mantêm-se abraçados para confirmar
que tudo isto é real, e não um sonho. Conseguiram sobreviver às forças
aterradoras do oceano e não faltará muito para alcançarem terra firme.
Porque a vida é breve, a alma é vasta, ter é tardar.
Este é um mar que une, já não separa. Num repente,
do alto do mastro da grande nau, se vê surgir terra do azul profundo. Aqui,
neste fim de mundo, os navegadores vieram encontrar as praias, as árvores, as
flores, as aves, beijos merecidos da verdade.
Ao leme segue um povo que deseja este mar que não
era seu, mas que, para glória sua, agora lhes pertence. Pasmaram os deuses e os
gigantes da terra, pasmaram, pois quem quis passar para além do Bojador, teve
de passar além da dor, teve de enfrentar os abismos que Deus ao mar ofereceu,
pois também no mar o mesmo Deus o céu espelhou.
O comandante, visivelmente emocionado, prepara a
tripulação para os muitos dias de trabalho que irão ser necessários para reparar
os navios, e resolve contar uma história para lhes aquecer os corações:
- Esta é uma
lenda recente, e na qual poucos acreditavam. Certo dia, uma armada de navios
invisíveis e invencíveis, com o diabo ao leme, resolveu atacar uma frota de
nobres marinheiros da mais fina linhagem e de coração puro. Uma parede de água
e de espuma foi levantada à frente das naus, e era sustentada por ventos
poderosos e indomáveis, capazes até de gelar o ânimo do mais valente dos
heróis. Abrigados no meio da escuridão, os marinheiros encheram-se de coragem e
aliaram-se ao escuro e às madrugadas. Alinharam-se com as noites que passaram a
habitar a sua bravura. As naus deixaram de parecer tão pequenas,
agigantaram-se, cresceram em tamanho e em audácia, um tamanho igual ao dos seus
corações. O escuro era agora o seu abrigo, e dessa maneira se prepararam para
lutar e tentar mudar o rumo do destino. Foram necessários todos os homens para
combater aqueles demónios, que atacavam pelos flancos, pela retaguarda, de
surpresa, e até por cima, de onde forças daquelas jamais tinham surgido. Mas
sem que os demónios suspeitassem, e antes dos dias fulgirem, os homens
rechaçaram os ataques, um após outro, afilados nas amuradas, sempre prontos
para guerrear, sempre prontos para sofrer. O comandante da frota atacada, que
sabia bem o que podiam os seus navios aguentar, virou-se para os marinheiros e
deu-lhes uma ordem invulgar. Deviam virar as embarcações contra as dos
demónios, e manter uma perseguição implacável às barcaças dos infernos. Todas
as medidas de segurança foram tomadas em consideração, e a escuridão iria
protegê-los, mas um dos barcos comandado pelos monstros arrebentou com a mezena
da nau capitânia e fez com que o mar engolisse dois bravos marinheiros. A
corrida não estava a dar os frutos esperados, a tripulação estava cansada e
entristecida, e muitas eram as entranhas vomitadas. A loucura atacou o capitão,
o capitão cedeu à estranha loucura que quase o cegou, mas a sua bravura evitou
os maus pensamentos. Mais uma vez o comandante do navio iria testar os seus até
aos limites, pois não estava habituado a derrotas, e deu ordens para manterem a
perseguição, seguindo ainda mais para sul. Mandou ensaiar as bombardas e os
canhões, que rugiram na escuridão, e mais uma vez os mandou falar, e uma
terceira e uma outra ainda. Dispararam os canhões por cinco vezes e uma mar
assombroso surgiu, por detrás das rochas, um mar montanha, extraordinário, que
depois de se alevantar, logo se acalmou. Isto causou espanto em toda a
tripulação. Os homens, confinados àquelas prisões de madeira flutuante durante
meses, arrancados aos seus sonhos e às suas famílias, venceram o mar que nunca
cede, venceram um mar onde navios fantasmas tinham aparecido para os derrotar e
os levar até às profundezas dos infernos. Bons ventos regressaram, e ondas mais
tranquilas, e uma chuva fresca que os alegrou. Os barcos regressaram à rota
inicial e tudo o que não fazia falta, passou a fazer, e o sonho, que é a
loucura, passou a fazer parte daquela alegria. E o sonho, que é a loucura,
passou a fazer parte da nossa alegria!
E mais um dia se passou, Teu é o reino, o poder e a
glória!