quinta-feira, 23 de abril de 2015

78 - ADELAIDE SONHOU


Adelaide sonhou.
Esta noite, Adelaide sonhou.
O irmão mais novo era um herói de asas enormes e manchadas, de corpo tatuado com estranhos animais marinhos.
O sonhou perturbou-a, pois era intenso, quase real.
Seres gigantescos de caudas enormes queriam roubar as asas de Álvaro, que dançava e cantava, debaixo de água, uma canção que ela  desconhecia. Os bichos tinham olhos gigantescos, negros e inexpressivos, mas o irmão sorria enquanto cantava, alheio ao perigo. Nadava orgulhoso, movendo para cima e para baixo umas longas asas ondulantes, até que desapareceu numa cordilheira marítima que se estendia por toda a extensão do leito do mar oceano.
Adelaide sonhou.
Álvaro lançou-lhe um último olhar, um em que ela mal reparou, e depois afastou-se, acompanhado por outro ser com asas iguais às suas, que o abraçava com ternura.
Era ali que eles viviam, naquela grandiosa cordilheira, e agora Adelaide sabe-o, porque sonhou.
Os bichos voltaram-se para ela, ameaçadores, e surpreenderam-na naquele lugar improvável. Partiram-lhe uma perna, comeram-lhe as mãos, deixaram-lhe o corpo inacabado, despido, sem pele nem macieza, e retiraram-lhe os olhos, que saltaram, até só restarem os ossos.
O que teria ela feito para ser castigada por um pesadelo assim?
O irmão ainda a viu transformar-se em estátua, pois só em sonhos ela pode visitar estes lugares distantes onde ele reside.
Os cabelos de Adelaide foram a última parte a transformar-se em pedra, e ondularam ao sabor das correntes que os vieram entrelaçar.
 
Nesta noite, Adelaide sonhou.
Dona morte mirou-a, com olhar severo.
Sem desviar os olhos, tocou-lhe no pescoço gelado com os seus finos dedos de gesso,
 
… e corpo de Adelaide brilhou pela última vez.
 
F I M 
 

quarta-feira, 22 de abril de 2015

77 - PARA ALÉM DO BOJADOR


Será possível? Estarão os marinheiros a alucinar? O mais que provável naufrágio não aconteceu! Em boa altura os ventos que carregavam a morte aos ombros, tal como os seus odores, desapareceram, mercê de um sortilégio improvável. Se a tormenta durasse mais alguns instantes, ninguém teria sobrevivido.
Quase todos os homens tinham deixado de acreditar na salvação, e bem poucos foram aqueles que nela sempre confiaram. Resistiram, como podiam, segurando-se às partes mais palpáveis daquela realidade escura, fria e ameaçadora. Os seus corpos gelados ficaram secos de esperança, e todas as ideias lhes pareciam inúteis. Dona morte divertiu-se a afagá-los por mais de uma vez, deixando que os seus bichos medonhos lhes conquistassem as almas a roubassem a última réstia de esperança. Perceberam que o fim estava próximo, viram-no ali tão perto, e espalharam-se pelo chão dos navios, guiados pelo medo.
E eis que a manhã nasce radiosa, e eles acordam e mal conseguem acreditar. Ninguém devia existir! Um silêncio de incredulidade mantém-se em suspenso por um longo período, até ser interrompido por um ruído abafado, repetitivo e ritmado, que chega do lado de fora do navio. Alguma coisa bate compassadamente na grande nau, provocando um som oco que chega até ao convés onde os marinheiros permanecem expectantes. O capitão lança-se à procura da origem do estranho batuque, e é com um tremendo espanto que descobre um náufrago a boiar, junto ao casco da embarcação, no qual vai batendo grandes palmadas.
- HOMEM AO MAR! Depressa, venham acudir a este marinheiro que caiu ao mar! RÁPIDO, MEXAM-SE, que o desgraçado já quase não tem forças…
Os tripulantes são rápidos a reagir, e lançam-lhe uma rede bem esticada onde o náufrago se fixa para que o consigam içar.
Álvaro aprecia sentir o corpo a ser esfregado desta maneira ao longo do corpo negro da grande nau que ajudou a salvar, enquanto o vão alçando. A rede é a sua companhia, e a felicidade cresce nele e nos seus camaradas, que muito se alegram com esta salvação. O último puxão lança-o para o chão que ele logo beija, esfregando-lhe os braços e as pernas, arranhando-lhe as unhas dos mesmos dedos com que se segurou a Cecília, que até ali o carregou.
- VEJAM! É Álvaro, o marinheiro bailarino. É um verdadeiro milagre teres conseguido sobreviver no mar enquanto durou a tempestade. Os ventos e as ondas que te levaram foram benevolentes, talvez tenham apreciado as tuas danças tanto como nós. – exclama o comandante, com o sorriso estampado no rosto.
Os deuses e todos os anjos do céu estiveram do lado dos navegantes. Nenhum deste homens devia existir, e principalmente porque nenhum destes homens devia existir, é que todos sentem, neste momento, uma sensação de extrema felicidade. Agora que o bom tempo está de regresso, um turbilhão de emoções toma conta das almas dos navegantes, que se abraçam, cantando e festejando a boa nova.
Sobreviveram! Isso é o mais importante.
Quem sabe se o resto da viagem não terá ficado garantida.
Agora estão entretidos a escutar a brisa e o mar, pequenos, mas tão enormes.
O canto da gaivotas regressou. Os pássaros escutam, sentem e cheiram este lugar onde o tempo parou.
Os marinheiros mantêm-se abraçados para confirmar que tudo isto é real, e não um sonho. Conseguiram sobreviver às forças aterradoras do oceano e não faltará muito para alcançarem terra firme.
Porque a vida é breve, a alma é vasta, ter é tardar.
Este é um mar que une, já não separa. Num repente, do alto do mastro da grande nau, se vê surgir terra do azul profundo. Aqui, neste fim de mundo, os navegadores vieram encontrar as praias, as árvores, as flores, as aves, beijos merecidos da verdade.
Ao leme segue um povo que deseja este mar que não era seu, mas que, para glória sua, agora lhes pertence. Pasmaram os deuses e os gigantes da terra, pasmaram, pois quem quis passar para além do Bojador, teve de passar além da dor, teve de enfrentar os abismos que Deus ao mar ofereceu, pois também no mar o mesmo Deus o céu espelhou.
O comandante, visivelmente emocionado, prepara a tripulação para os muitos dias de trabalho que irão ser necessários para reparar os navios, e resolve contar uma história para lhes aquecer os corações:
- Esta é uma lenda recente, e na qual poucos acreditavam. Certo dia, uma armada de navios invisíveis e invencíveis, com o diabo ao leme, resolveu atacar uma frota de nobres marinheiros da mais fina linhagem e de coração puro. Uma parede de água e de espuma foi levantada à frente das naus, e era sustentada por ventos poderosos e indomáveis, capazes até de gelar o ânimo do mais valente dos heróis. Abrigados no meio da escuridão, os marinheiros encheram-se de coragem e aliaram-se ao escuro e às madrugadas. Alinharam-se com as noites que passaram a habitar a sua bravura. As naus deixaram de parecer tão pequenas, agigantaram-se, cresceram em tamanho e em audácia, um tamanho igual ao dos seus corações. O escuro era agora o seu abrigo, e dessa maneira se prepararam para lutar e tentar mudar o rumo do destino. Foram necessários todos os homens para combater aqueles demónios, que atacavam pelos flancos, pela retaguarda, de surpresa, e até por cima, de onde forças daquelas jamais tinham surgido. Mas sem que os demónios suspeitassem, e antes dos dias fulgirem, os homens rechaçaram os ataques, um após outro, afilados nas amuradas, sempre prontos para guerrear, sempre prontos para sofrer. O comandante da frota atacada, que sabia bem o que podiam os seus navios aguentar, virou-se para os marinheiros e deu-lhes uma ordem invulgar. Deviam virar as embarcações contra as dos demónios, e manter uma perseguição implacável às barcaças dos infernos. Todas as medidas de segurança foram tomadas em consideração, e a escuridão iria protegê-los, mas um dos barcos comandado pelos monstros arrebentou com a mezena da nau capitânia e fez com que o mar engolisse dois bravos marinheiros. A corrida não estava a dar os frutos esperados, a tripulação estava cansada e entristecida, e muitas eram as entranhas vomitadas. A loucura atacou o capitão, o capitão cedeu à estranha loucura que quase o cegou, mas a sua bravura evitou os maus pensamentos. Mais uma vez o comandante do navio iria testar os seus até aos limites, pois não estava habituado a derrotas, e deu ordens para manterem a perseguição, seguindo ainda mais para sul. Mandou ensaiar as bombardas e os canhões, que rugiram na escuridão, e mais uma vez os mandou falar, e uma terceira e uma outra ainda. Dispararam os canhões por cinco vezes e uma mar assombroso surgiu, por detrás das rochas, um mar montanha, extraordinário, que depois de se alevantar, logo se acalmou. Isto causou espanto em toda a tripulação. Os homens, confinados àquelas prisões de madeira flutuante durante meses, arrancados aos seus sonhos e às suas famílias, venceram o mar que nunca cede, venceram um mar onde navios fantasmas tinham aparecido para os derrotar e os levar até às profundezas dos infernos. Bons ventos regressaram, e ondas mais tranquilas, e uma chuva fresca que os alegrou. Os barcos regressaram à rota inicial e tudo o que não fazia falta, passou a fazer, e o sonho, que é a loucura, passou a fazer parte daquela alegria. E o sonho, que é a loucura, passou a fazer parte da nossa alegria!
E mais um dia se passou, Teu é o reino, o poder e a glória!


sexta-feira, 17 de abril de 2015

76 - ESTAREI SEMPRE CONTIGO


Álvaro já está com saudades deste lugar onde tudo é tão diferente daquilo que conhece e conheceu. Aqui descobriu segredos e histórias que para sempre o modificaram.
- Um dia, todos seremos estátuas como estas que embelezam o fundo do lago, criaturas imperfeitas feitas de pedra e coral, esculpidas pelas memórias e acontecimentos da vida. Nada me pertence nesta ilha que sou! Nada é nosso nesta eternidade que não desfrutamos, ao contrário dos deuses poderosos que aqui habitam.
Álvaro abraça a grande manta e beija-a com ternura. Tenta escutar o bater do coração deste imenso cosmos ao qual está enlaçado, um tão impossível de acontecer ou existir. Os pensamentos dos dois entrelaçam-se, conquistam o espaço infinito que existe em suas mentes, e onde as verdades e as mentiras gostam de brincar como crianças inocentes. É aí que os seus corpos ficam iguais e brilhantes como dentro da enorme esfera de estátuas que os abrigou. Os olhares tocam-se, encontram-se, e eles sabem que o amor existe pois sem ele a vida não tem qualquer significado.
Perto um do outro, recordam todos os instantes de felicidade, e a alma do marinheiro ilumina-se:
- Se eu pudesse, ficaria aqui para sempre, perto de ti, Cecília! Escolheria um lugar sem som e sem luz, como aqueles que percorremos, perdidos, no fundo deste lago oceano. Eu não hesitaria em percorrê-los, mais uma vez, sabendo que estarias comigo, traçada nas tuas linhas suaves com coxas de pele macia como a seda. Demorar-nos-íamos o tempo necessário para fazermos roçar as nossas almas. Eu acredito que, quando morrer, serei colocado neste lugar improvável e secreto onde passarei a ser apenas mais uma estátua, mas sei que é aqui que tu me visitarás. Sedna confirmou-o no instante em que Poseidon avançou para mim com a ira estampada no rosto.
O corpo da manta acende-se, mais uma vez, antes de se transformar em mulher. Cecília tem o corpo a brilhar, e a alma cheia de luz. Debaixo de uma água cristalina aquecida pelos raios de sol que chegam da superfície, abraça-se ao marinheiro, beijando-o apaixonadamente:
- Acredito, como tu, que nos iremos reencontrar, um dia, sob uma qualquer forma perfeita que ainda desconhecemos. – diz Cecília, com uma voz meiga e olhar sereno. O sangue palpita-lhe nas veias ao entender que chegou a hora de Álvaro regressar. A vida dos seus camaradas de viagem dependia do heroico navegador, e ele salvou-os através de um instinto e coragem tão raros que até aos deuses conseguiu espantar.
- Parte, pois tens de partir, mas fica sabendo que a história da tua passagem por este reino perdurará muito para lá dos tempos…
As mãos de Cecília guardam as mãos do navegante. A manta, deusa bailarina, sabe que o momento chegou, pois já se avistam as velas dos navios, ao longe, mas é-lhe difícil dizer adeus.
- Parte, vai ter com os teus companheiros a quem salvaste de um triste fim.
As mãos de Cecília já não guardam as mãos do navegante.
Ao longe, as mãos da manta, deusa bailarina, acenam-lhe um adeus.

quinta-feira, 16 de abril de 2015

75 - MOMENTOS DE CRIAÇÃO



Álvaro experimenta novas dificuldades em respirar, está cansado e a visão torna-se obscura e muito nublosa. Cecília nada com a mesma elegância  de um anjo alado, ao sabor das correntes, enquanto transporta o corpo quente do marinheiro colado às costas. A temperatura da água vai baixando à medida que se afastam cada vez mais da cidade onde Tetis e Poseidon se defrontam, acompanhados por centenas de cardumes com peixes de várias espécies.
O conflito entre as duas divindades dá origem ao aparecimento de vários vulcões marinhos do fundo do leito dos oceanos. As espumas vaporosas e cinzentas que brotam das chaminés avançam rapidamente para a cidade e ameaçam tomá-la de assalto.
O mar depressa muda de cor.
Onde ainda agora existia a cidade, apenas se consegue vislumbrar uma gigantesca cordilheira de tons grisalhos, construída com lamas quentes e pastosas que a engrandecem.
As montanhas chegam à superfície, onde crescem e se multiplicam, brilhantes e cálidas, por cima de um mar impetuoso. Soltam vapores com cheiros pútridos muito intensos que chegam das entranhas do planeta, de lugares bem mais inóspitos que a mais profunda das fossas do grande lago oceano. O ar fresco e húmido mistura-se com estes gases e as massas quentes de lava fervem a céu aberto, gerando novas terras, criando ilhas e arquipélagos negros e vermelhos. Formam nuvens das mesmas cores que sobem até às camadas mais altas da atmosfera num cenário caótico de rara beleza.
Os olhos de Cecília brilham.
Nestes domínios não humanos, acentuam-se as diferenças entre as muitas espécies de animais marinhos, numa incrível turbilhão de vida.
Nestes domínios do fundo do grande lago, está guardada a maior e mais grandiosa exposição de estátuas, e ela não para de crescer.
- Não subas, Cecília, não subas ainda. – murmura Álvaro – Custa-me ter de me despedir destes lugares.
Passaram mais de dez horas desde que a manta belíssima o resgatou. Eles continuam a avançar, atravessando lugares cada vez mais perigosos e inabitáveis, evitando as correntes fortes e muito quentes, até que se perdem, momentaneamente, do caminho original. Cecília sobe, de imediato, para águas mais mornas e suportáveis, arriscando uma manobra ousada que quase desequilibra o navegante. Ele conseguiu agarrar-se, com extrema dificuldade.
- Temos de subir, mas não tenhas receio, Álvaro, em breve estarás a salvo deste caos.
O tripulante encosta-se ainda mais ao corpo da manta bailarina. Vira a cabeça de lado, para baixo, estende-se e estica bem corpo, com as pernas e braços abertos, e usa a força das mãos e dos dedos para melhor se conseguir segurar. A subida ainda será longa, mas Cecília é rápida a percorrer as águas do lago, tal como foi veloz a reagir e a retirar o navegante do meio daquele embate feroz.
- Quando Poseidon se enerva, só mesmo a rainha Anfitrite é capaz de o acalmar. As suas discussões são célebres, tornaram-se famosas pelo tempo que duram e pelos estragos que provocam. A cidade será transformada, mais uma vez, numa imensa cordilheira. Novas ilhas e arquipélagos nascerão, e a configuração dos continentes sofrerá grandes mudanças pois as suas costas serão rasgadas, dissolvidas, filtradas, erguidas e ajustadas, tudo será redesenhado ao pormenor durante essa longa, quente e nervosa altercação.

sábado, 11 de abril de 2015

74 - A FÚRIA DE POSEIDON


Álvaro tremeu quando a água mudou de tom.
O deus dos mares faz-lhe medo, pois ele receia que o possa ocultar, para sempre, no interior profundo do leito do lago oceano de onde não conseguirá escapar.
Poseidon transforma todos os respeitos em temores, e todos os azuis ficam vermelhos. Neste dia improvável em que o homem foi autorizado pela rainha a visitar a cidade, para assim ser criada uma lenda, ele finge não o ver. A cidade não é um lugar de visitas, desde o início dos tempos que assim acontece, pois ninguém teve a ousadia ou a coragem de a alcançar. A divindade olhou para Mari, irada, e ela de imediato lhe compreendeu os pensamentos. Sem dizerem uma única palavra, encetaram um diálogo feroz através de gestos e olhares muito expressivos.
Um branco intenso e luminoso quase cega o marinheiro, e um calor excessivo aquece as águas afetando-lhe a respiração. Morrerá afogado se não conseguir recuperar a tranquilidade necessária para controlar os pulmões. Álvaro está visivelmente afetado com a aproximação de Poseidon, e Sedna interfere, colocando-se à sua frente até que as testas dos dois deuses acabam por se tocar. O confronto parece inevitável.
- FOGE! – grita Anfitrite, apontando para vulcões subaquáticos que surgem de todos os lados, ameaçadores.
O marinheiro afasta-se para onde o brilho e o calor são menos intensos. Consegue acalmar-se o suficiente para dominar o processo de respiração, que ficou bem mais doloroso. O peito pesa-lhe muito, e a cabeça dói-lhe tanto que deve estar prestes a explodir. Nadar é uma tarefa complicada, e ele fecha os olhos para melhor se concentrar. Vê-se a nadar como se fosse manta, pois essa forma perfeita ajuda-o a avançar.
- Se fechares os olhos e resistires à tentação de os abrires, eu ajudar-te-ei a lutar contra as tempestades – exclama Cecília, acabada de surgir do meio da escuridão - A minha alma de manta é simples, Álvaro, e a minha forma permitirá uma maior rapidez na tua fuga. Erraremos, os dois, como sombras, no fundo do lago. Iemanjá encarregar-se-á de acalmar a fúria de Poseidon. Aqui em baixo não é o mundo dos homens, e tudo é bem mais difícil de compreender. Vais voltar a sentir as pernas pesadas, por isso tens de ser rápido a agarrar-me, mas tenta fazê-lo mantendo sempre os teus olhos fechados.